Para os leitores mais sensíveis talvez seja melhor clarificar que esta coluna prefere analisar barbaridades em detrimento de banalidades.
Quero com isto dizer: não a partilhem durante um simpático almoço de família ao domingo, quando o assunto á mesa estiver a esfriar; a Tia Lurdes, o primo Jaime, a sobrinha Adelaide e restantes parentes não vão simpatizar com estas divagações sobre simbolismo da Marvel.
Agora que estão avisados sobre o conteúdo não-filtrado das questões existenciais aqui desenvolvidas, podemos passar á análise.
Thanos, o vilão. Mas será mesmo? Agora que este pacote de filmes da Marvel chegou á sua conclusão, podemos discutir o filme e espremer todo o conteúdo/simbolismo possível e imaginário.
A questão do crime de Thanos é a questão que realmente me põe a pensar no pós-filme:
Será ele um vilão? Se sim, ele é um vilão mal construído, no sentido em que NO FILME ele não representa o Mal (ou a miséria do espírito humano) mas antes uma cura para um corpo em decadência. No fundo deseja um recomeço.
Para tentar contornar spoilers do filme, vou recorrer á minha memória na diagonal sobre a saga da Infinity Gauntlet em banda desenhada.
A premissa era reunir as jóias mais poderosas do universo e fundi-las para criar uma inédita luva de poder supremo.
Se a memória não me falha, a decisão do Thanos (da graphic novel) em dizimar metade da população sensível do universo era de certo modo uma prova de amor pela Lady Death, que é a personificação da Morte* enquanto entidade dentro da franquia Marvel Comics Universe (MCU).
(*Essa personificação da Morte, enquanto entidade feminina, é algo comum a diversas culturas espalhadas pelo planeta; o próprio Jim Starlin – criador da personagem Thanos – admitiu basear-se na estrutura da mitologia grega, tanto no caso da Morte como no caso de Thanos/ Tânato*)
Seguindo a narrativa do livro: consumido pelo amor ao Nilismo e á Lady Death, Thanos tenta de várias maneiras impressiona-la e seduzi-la. Todas as tentativas chocam com a aparente indiferença ao amor que Thanos tem para oferecer por parte do objeto do seu afecto. Aparentemente Lady Death está ofendida por Thanos a ter ultrapassado em poder, por meio da Manopla do Infinito/ Infinity Gauntlet.
Não tenho presente o exato momento em que ele decide eliminar metade da população do universo mas sei que o faz, exclusivamente para agradá-la, como prova de amor e afecto.
Prosseguindo a história, Adam Warlock (um antagonista de Thanos) lidera uma ofensiva que incluí os seres super poderosos da Terra (Vingadores), Galactus, Silver Surfer e algumas entidades ultra-poderosas que são o “stablishment” do poder absoluto no MCU.
Mesmo a eliminação de metade da população sensível do Universo parece não impressionar Lady Death. Thanos é então aconselhado por Mefisto a “desligar” todas as jóias da Infinity Gauntlet (com excepção jóia da Força) como mais uma exibição de poderes e nivelação do combate, afim de finalmente impressionar Lady Death num combate mais viril.
De caminho cria uma espécie de clone feminino cuja existência é inteiramente devotada a agradar-lhe e servir de companhia, antecipando a rejeição definitiva de Lady Death.
Penso que já chega. O que está acima descrito chega-me para entender, classificar e entender as motivações de Thanos.
É um niilista, completamente apaixonado, que comete o supremo crime passional. Eliminar metade do universo como prenda de São Valentim. Nada é demasiado exagerado para este galanteador Casanova. É arrogante, aristocrata, exibicionista, com uma paixão terrível por poder absoluto. Entende que o seu intelecto e as suas conclusões sobre a vida conferem-lhe o direito ao poder universal absoluto. É incapaz de compreender a palavra solidariedade ou empatia. Um autêntico Klingon.
Antes desta saga já tinha tentado por duas vezes atingir o poder universal por outros meios, pelo caminho matou familiares, destronou o próprio pai e pensou que aniquilou o seu próprio planeta. O homem está em todas, o seu percurso só Freud explica.
Rejeitado por todos os que alguma vez pretendeu subjugar ao seu afeto acaba por se refugiar na criação de um clone feminino que acaba por se assemelhar a um escravo, um autómato ou animal de estimação castrado.
No filme triunfal que foi a estreia de Avengers EndGame, Thanos é uma bela desculpa para a maior batalha de todos os tempos e um espetacular crossover de seres super-poderosos.
Admito que é uma perspetiva injusta, pois o filme anterior explora bastante bem a personagem, ainda que por caminhos diferentes do argumento original do livro.
Todavia, o Thanos do filme não consegue justificar porque é que ele acha que o genocídio de metade dos seres humanos é algo de lógico a executar para atingir os seus fins. A justificação esotérica sobre um vago equilíbrio de forças, um yin-yang é redutora para a dimensão real do que ele pretende e consegue executar. Retira-lhe (des)humanidade e acaba por ser mais próximo de uma caricatura de Thanos do livro.
Torna-se basicamente um psicopata poderoso (e estiloso). A situação pós genocídio que é descrita no começo do filme não aparenta ter melhorado em nada a situação de quem quer seja. E mesmo que tudo estivesse muito melhor – mais recursos, mais sustentabilidade, mais espaços – não explica o seu isolamento voluntário neste universo pós apocalíptico criado por ele. Fica menos plausível, ou pelo menos retira-lhe alguma profundidade.
Enquanto que no livro Thanos é um vilão soberbamente descrito, cujas fraquezas são profundamente humanas e com as quais nos podemos relacionar, no cinema ele é tratado com uma abordagem mais superficial.
No entanto, ainda que o filme opte por não enfatizar as suas motivações (se comparado com a dinâmica do livro) passa bem a mensagem de que ele busca uma renovação para melhor. E que os fins justificam os meios; a evolução que ele propõe é a mesma que descreve como “inevitável”.
Na nossa sociedade, á luz dos valores contemporâneos, o valor da vida é algo que não se pode medir, não é passível de ser sacrificado em função de algo superior porque nada é classificado como superior ao valor de “a Vida”.
É a condição básica para nos classificarmos como civilizados (e ainda bem).
Era apenas um adolescente quando li a Infinity Gauntlet a primeira vez. O vilão era tão inteligentemente construído que no fim do livro dei comigo a fazer este exercício:
Que estado da ordem natural das coisas me poderia levar a cometer o genocídio de metade da poulação sensível do planeta em nome de um “bem maior”? Qual seria o meu preço? Qual seria o nosso preço?
Somos os nossos valores e as nossas ações? Ou somos aquilo que ditam as circunstâncias?
Estamos todos livres de cometer um crime passional?
Thanos, o vilão?