Saudações navegadores do BDnauta.
O arquétipo do herói grego volta a atacar.
Começo por fazer uma declaração de interesses: fui, sou e serei um grande fã de Peter Parker, o amigável fotógrafo que se esconde por detrás da máscara do Homem-Aranha, o amigo da vizinhança.
Ainda muito jovem fui exposto a todo o tipo de Comics de super-heróis da DC e Marvel. Todas elas procuram explorar (entre outras coisas) a relação entre o herói e o seu alter-ego. E ao fim de todos estes anos nenhum Comic explorou essa relação de maneira mais inteligente, funcional e divertida que o Amazing Spiderman.
O Peter Parker é o cidadão que lê bandas desenhadas dentro de uma banda desenhada.
Quando descobri e me apaixonei pelas Comics, o que mais me impressionava era a gritante ausência de vitórias que o Spiderman alcançava, se comparado a um Superman ou Batman.
O Spiderman RARAMENTE derrota os seus adversários. E mesmo quando os derrota é sempre uma vitória temporária, eles não desistem e ele nunca parece interessado em derrota-los a fundo. Para piorar, vários deles estão de alguma maneira relacionados com a sua vida de jornalismo ou pessoal: Osborn, Brock, Jameson, etc.
E porquê Peter parece mais interessado em equilibrar o mundo que o rodeia do que cortar o mal pela raíz? Ou seja destruir os adversários depois de derrotados? A razão é porque atrás da máscara e do fato de Spiderman esconde-se um homem temperado pela culpa (não consumido, como Bruce Wayne) e completamente comprometido com aquilo que ele considera valores superiores ao seu interesse. O seu trauma de perder os pais promove a situação de ele ser educado por tios acima da meia idade, que talvez por pertencerem a outro tempo, transmitem-lhe valores em desuso: com um grande poder vem uma grande responsabilidade. Não é uma responsabilidade obrigatória mas sim uma maneira de estar comprometida com os valores que fazem dele aquilo que ele é.
Quero com isto concluir que o Spiderman é incorruptível, porque atrás da máscara se esconde um tipo incorruptível. Spiderman não faz mais do que importar as dinâmicas do cidadão Peter Parker (eticamente correto) para o fato e o super-poder do herói (num mundo cheio de vilania e crime), neste caso na pessoa do íntegro e insubornável orfão que foi educado pelos velhos tios com valores á prova de bala. O Spiderman pretende transmitir que a verdadeira força do cabeça de teia não é a super-força do herói e sim os valores com que ele está comprometido.
Isto lembra-me um certo herói do momento chamado Jon Snow.
Jon Snow, outro menino privado do amor dos verdadeiros pais e crescido em um ambiente adverso em que (spoilers) o seu pai (que na realidade é o seu tio) não pode o pode tratar com o amor e mordomias que oferece a outros filhos devido ao facto de Jon ser um bastardo, que nesta ficção medieval é uma cruz impossível de carregar. O pior estigma que um jovem nobre pode ter.
De qualquer modo, ainda que o tratamento seja frio e cerimonial (no pior sentido da palavra, desprovido de calor humano e empatia) Jon obtém educação, valores e até algum amor contido da parte do pai (outro incorruptível que na realidade o faz para não atrair atenções sobre o jovem órfão, cuja identidade escondida é a chave de todo o enredo) e um amor mais caloroso por parte dos irmãos, cujos laços e convivência reforça o amor uns pelos outros; e pelo menos nesse “espaço” de irmãos, a estrutura de classes parece mais diluída, o amor destaca-se acima dos detalhes. É nesse espaço que Jon desenvolve as suas qualidades e valores em conjunto com os seus temores.
O desenrolar inicial da sua trajetória, na ficção de Game of Thrones, vai nos mostrando como ele obtém igualmente o amor de um tio filiado na Patrulha da Noite, uma honrada irmandade de patrulheiros/rangers, que é admirado por todos aqueles que conhecem a natureza e dureza do seu trabalho. Jon acaba por se juntar á irmandade e os seus novos companheiros, que com ele evoluem, ajudam a moldar o carácter definitivo de Jon: honrado, corajoso, sensível, determinado e sobretudo incorruptível. A irmandade da Patrulha da Noite é sagrada e a honra é prezada acima de tudo, pelo menos em teoria.
A sua condição de bastardo, que toda a gente faz questão de sublinhar de 5 em 5 minutos, ajuda a moldar a sua personalidade que se torna na absoluta referência dos valores do “Bem” na série/livros. Jon Snow, para todos os efeitos é a representação visível mais próxima da máxima que governa a moral e ética de Peter Parker: com um grande poder vem uma grande responsabilidade. Gradualmente as suas responsabilidades crescem ao limite do quase impensável e a sua moral e integridade cresce com ele e acompanha-o. É um verdadeiro superstar tímido e inflexível na procura do bem comum.
Por este motivo é muito fácil olhar para ele como um Peter Parker reciclado sem super poderes.
Ainda que Jon seja capaz de alguns prodígios vagamente ligados a magia ou magia negra, em nenhum momento ele deixa de ser um ser humano cheio de dúvidas, fraquezas e uma carga emocional que aparenta ser um fardo demasiado grande para ele carregar. As circunstâncias são sempre muito punitivas para ele, o pior trabalho sobra sempre para ele e ninguém parece dar real valor á importância da sua luta, que visa o bem comum do Reino e a proteção contra uma ameaça que supera as suas habituais intrigas terrenas entre Reinos medievais.
Tal como Peter Parker, que vê Spiderman permanentemente injuriado pela imprensa e perseguido pelas autoridades. Peter, como Jon parece sempre estar metido em algo que não pediu:
Não pediu os poderes, não pediu a responsabilidade nem a intervenção nestes esquemas de crimes envolvendo super-vilões. Mas tal como Jon Snow, em nenhum momento se furta de assumir responsabilidades sobre algo que ele entende que não ter o direito de ignorar.
Pelo caminho ambos são desejados por mulheres, mas nunca nenhum deles obtém uma satisfação plena da vida amorosa, porque a vida de combate ao crime cria sempre situações trágicas, que tornam as suas existências em uma tentativa frustrada de conciliar amor com o dever.
No fundo Peter e Jon saõ arquétipos do herói grego trágico reciclados em ambientes diferentes. E enquanto formos fascinados com atos altruístas e heróicos haverá sempre espaço para um clássico herói grego. E não me parece que nos fartemos tão cedo: já andamos metidos nisto desde 1100 A.C aproximadamente.
Peter Snow ou Jon Parker, tanto faz.